domingo, 22 de maio de 2016

Quando você partiu...

Quando você partiu, eu fiquei.
Por entre seus cabelos enrolados na escova sobre a cômoda.
No suor de sua testa, que se desfez no ralo da pia depois das atividades de terça.
No desenho borrado da sua boca feito de batom no guardanapo esquecido na mesa.
No cigarro de marca ruim que você fumou pela falta de outro, mas não tragou.
Eu fiquei na fotocópia de uma folha só, que você dobrou e perdeu entre seus livros de Garcia Márquez.
Fiquei dentro do gole de vinho que avinagrou na geladeira entre garrafas de rum que você nunca abrirá.
Eu fiquei nos dias passados, nas coisas que você precisou, usou por metade e esqueceu por descuido.

Quando você partiu, eu fiquei.
Na coleira surrada da sua terceira cadela que fugiu quando achou o portão aberto.
Entre versos inacabados que você começara quando na aula tediosa do professor chato.
No bilhete úmido e rasgado dentro do bolso da calça velha que você botou pra tingir.
No resto do perfume de frasco barato, que já dá trabalho pra usar por estar no fim.

Quando você partiu, eu fiquei nas coisas fora da mala.
No secador, na bota fora de estação, no vestido longo de formatura. 
Fiquei nas coisas antigas ou pesadas, mas que lhe farão falta numa tarde qualquer de domingo.

Quando você partiu, eu fiquei nas coisas que já conhecia e você não queria.

Você mudava demais e eu tinha preguiça de sair de casa.

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