segunda-feira, 18 de julho de 2016

Carro no tempo


Sou carro no tempo
Muita velocidade e torque ao relento 
Motor exposto aos desenganos das intemperanças 
Depois da tempestade, aqui, nenhuma bonança 
Sou lata retorcida e borrachas ressecadas
Válvulas demais sem uso 
Histórias e estradas que se punham no rumo são passadas 
Restaram-me as marcas 
Os amassados das topadas com outros tantos feitos eu
Fendas na lataria que se fizeram de memoráveis aventuras
Hoje são entradas da hora que me oxida e enferruja 
Sou carro no tempo 
Que não passeia, não trabalha. Entulha
Descansa sem honra sob o sol, o descaso e a chuva 
O óleo que me sobrara nas veias juntou-se em graxa 
E hoje suja e aborrece quem me visita por nostalgia 
Ou em busca de uma peça que lhe repare algo mais novo e a própria vida 
Sou carro no tempo
Estou todo aqui, mas não me veem  
Deve ser por minha tinta enrugada sobre o capô se misturando aos rejeitos de pássaros ultrajantes, que sequer reconhecem a potência sepultada de onde cagam.

Vazio


Vazio.
Hoje é tudo que sou.
Uma casa à venda num bairro distante, onde passarinho só faz ninho nas varandas, com medo de entrar na pujante solidão.
Vazio.
Aquilo que por puro azar aqui dentro me caia sequer vigora, não floresce, não se reconhece, tão pouco demora.
Vazio.
É tudo que sou. Uma enormidade de coisa alguma. Vazio.
Vazio como armário em loja de móveis.
Sem memórias, sem cheiro de livros, sem discos, sem marcas de copos, sem porta-retratos, sem donos.
Vazio.
Sem alarde ou silêncio.
Sem riso, dor ou carnaval.
Sem palavras. Sem sentido.
Nada feito de carne. Nada espiritual.
Vazio.
Agora. E pra eternidade. Ainda que não demore mais que o feriado nacional.
Ainda que fique cheia de visita minha sala de estar.
Ainda que me encha de bebida esperando o tempo passar.
Vazio.
Não existem rastros das coisas que me existiram. Nem se pode mais saber quando o fizeram, nem há previsão para voltarem a existir.
Há sequer esperança.
Há sequer saudade.
Há sequer eu mesmo.
Não me reconheço.
Com a rude batida de porta de alguém que saiu, seja lá o que em meu peito rasgado vivia, caiu desfeito em cacos.
Algo que, agora já não sabido, amarga o destino de jazer num canto com algumas migalhas de bolacha e pelos de gato.