domingo, 22 de maio de 2016

Quando você partiu...

Quando você partiu, eu fiquei.
Por entre seus cabelos enrolados na escova sobre a cômoda.
No suor de sua testa, que se desfez no ralo da pia depois das atividades de terça.
No desenho borrado da sua boca feito de batom no guardanapo esquecido na mesa.
No cigarro de marca ruim que você fumou pela falta de outro, mas não tragou.
Eu fiquei na fotocópia de uma folha só, que você dobrou e perdeu entre seus livros de Garcia Márquez.
Fiquei dentro do gole de vinho que avinagrou na geladeira entre garrafas de rum que você nunca abrirá.
Eu fiquei nos dias passados, nas coisas que você precisou, usou por metade e esqueceu por descuido.

Quando você partiu, eu fiquei.
Na coleira surrada da sua terceira cadela que fugiu quando achou o portão aberto.
Entre versos inacabados que você começara quando na aula tediosa do professor chato.
No bilhete úmido e rasgado dentro do bolso da calça velha que você botou pra tingir.
No resto do perfume de frasco barato, que já dá trabalho pra usar por estar no fim.

Quando você partiu, eu fiquei nas coisas fora da mala.
No secador, na bota fora de estação, no vestido longo de formatura. 
Fiquei nas coisas antigas ou pesadas, mas que lhe farão falta numa tarde qualquer de domingo.

Quando você partiu, eu fiquei nas coisas que já conhecia e você não queria.

Você mudava demais e eu tinha preguiça de sair de casa.

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Morte é gerúndio


O que é viver, senão morrer devagarinho?!
Quantos passam a vida preocupados com a hora em que a morte lhes visitarão? Como se fosse assim de súbito. Como se fosse o óbito um acaso. Como se morte fosse surpresa.
Sinto lhe informar que a hora da morte é já!
A sua, a minha e a do padeiro.
Estamos a morrer a cada cigarro fumado, prato servido, minuto corrido, beijo não dado. Estamos a morrer o tempo inteiro. Estamos a morrer durante os banhos quentes em nossas casas confortáveis. Mesmo que não sejam quentes, mesmo que não sejam casas, mesmo que não sejam confortáveis. Morrem os que esperam, morrem igualmente os que se esqueceram do fato.
A morte é gerúndio. Estamos todos morrendo.
A sentença final foi dada e passou-se à execução antes de carimbada a certidão de nascimento. Sinto muito, mas não há tempo para choro ou lamento. Na verdade, talvez haja, mas dedicar-se a isso é algo que eu não recomendo. A morte urge à nossa porta. Adiante-se que já passa da hora!
Façamos as malas enquanto o trem lúgubre já partiu; despeça-se dos seus queridos que vão em outro vagão.
A vida nunca foi inteira, plena, completa. Nem lhe prometeram-na assim. Mas também não falaram que a morte viria a reboque, eu sei.
A vida morre em mim a cada letra que lanço neste aviso dispensável. Vou tratar então de findá-lo antes que finde eu.
A vida é ferro velho, a morte é ferrugem.
Só me resta esperar que enquanto não se acaba toda a vida, eu saiba gozar de uma morte digna.

Que a morte já está, não duvido. Triste mesmo deve ser morrer sem ter vivido.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Despretensiosamente

O que você acha de nos encontrarmos?
Sabe, despretensiosamente
Sem levar muito a sério
Sem planos à frente
Se quiser pensar, até espero
Não tenho nada marcado
Não vamos exigir nada perfeito
Temos corações já cansados
Bem calejados pelo tempo
Podemos ser nós mesmos
Sem medo de pequenos defeitos
E sem promessas a esmo
Sabe, despretensiosamente
A gente riria do meu sotaque
Você me contaria sua infância
E o que vai ao seu prato favorito
Eu lhe prometeria fazê-lo
A gente poderia dividir um medo
Uma piada sem graça e um velho segredo
Então, enquanto toca uma música antiga
Daríamos um intencional silêncio
Como se ensaiado fosse, devagar
Permitindo cruzarmos o olhar
Pronto
Teria nos seus olhos um templo de agora em diante
Sabe, despretensiosamente
Eu lhe contaria querer viver de poesia
“Vou lhe inspirar”, você diria
Poderia me falar de algum clube de leitura que frequente
Eu reclamaria sobre a chatice de algum cliente
E você, como adolescente, compararia nossas mãos e adoraria o formato dos meus dedos
E aí nesse instante
Nesse exato instante, sem ainda saber
Eu me apaixonaria por você
Despretensiosamente apaixonado
Ficaríamos bem
Você se esqueceria da hora
Nenhum de nós iria embora
Sabe? Sem pretensões...
Sem saber que tínhamos ali a melhor chance de dois corações...
Aproveitaríamos

Despretensiosamente, o que me diz de nos vermos amanhã também?
E se me der motivos para ficar?
E se eu lhe der motivos para sorrir?
E se encontrarmos uma maneira de sonhar?

E se faltando pretensões sobrar espaço para o amor?!

quarta-feira, 11 de maio de 2016

O soneto do amor próprio.

 

A gente fita o mar à espera de um súbito encontro
A gente busca no olhar, no beijo e amor do outro
Sob a mesa de jantar, na esquina de casa, num verso solto
Como se alguém pudesse nos dar receita ou método pronto

Nós aprendemos devagar, nem sempre faz logo sentido
Porque aprendemos a divagar, sonhar em busca de abrigo
Custamos poder enxergar que é de dentro que vem o sorriso 
A felicidade, eu afirmo, nasce contigo

Todo horizonte tem um pôr sol no entardecer
Todo sorriso tem um bom motivo para ser
Ame-se e descubra que o melhor é você

A poesia está no coração de quem lê
Como o milagre na prece de quem crê
Cuida de si e de sorrir porque a vida é rara

terça-feira, 10 de maio de 2016

Das tantas vezes que fracassei.

Fracassei, tenho que admitir.
 

Em tudo que é área eu logrei alguma espécie de desastre. Nunca fui funcionário do mês, com foto cafona na parede do trabalho; sempre fui um filho relapso, às queixas de minha mãe, passei muito tempo enfurnado no quarto; não viajei à Europa e fiz mochilão; no banco não tenho um tostão guardado; nunca saí em revista; ganhei sequer uma rifa; fui goleiro reserva do time do bairro. 
Minha lista de derrotas é densa, profunda, sórdida e questionável. Mas no amor, meu jovem... No amor eu consegui ser pior do que no golf – que comprei uma coleção de tacos, mas sequer sei onde há um campo. 
O amor me ferrou a vida, mas ele não é em tudo culpado, eu também vacilei com ele um tanto. Ele brincou comigo, me fez de gato e sapato, deu-me algumas surras e até quando achei que ganhava, me pegou de virada. O próprio amor me ensinou, a duras penas, que não devia me entregar a amor barato. Só nunca me disse onde vejo o preço. Ah, o amor foi, sim, meu maior fracasso.
O amor foi meu algoz e o porquê só hoje eu sei. Nunca soube tratá-lo, o que é que comia, onde dormia ou se precisava podá-lo. Mas, pelo que vejo, eu sou mesmo uma porta, porque sinto que nessa lista ainda cabe mais pancada amorosa.
Pois eu amei. Amei e continuarei. Se tantas vezes fracassei é porque tantas e uma vezes tentei.

terça-feira, 3 de maio de 2016

às vezes





Às vezes é vontade
Às vezes é arrependimento
Às vezes é medo
Às vezes é contentamento
Às vezes solidão
Às vezes a melhor saída
Às vezes não
Às vezes vazio
Falta de corpo
Falta de alma
Às vezes um frio
Às vezes lhe perco
Esqueço os olhos e o tom do cabelo
Às vezes não sai da minha língua o gosto
E em tudo eu sinto o seu cheiro
Às vezes eu grito
Calado, lhe peço socorro
E imploro que volte
Às vezes nem quero que escute
Às vezes é sufoco
Às vezes não sou eu
Somos muito nós dois
O que éramos e não fomos
Às vezes corro no sentido oposto
Pra deixar de querer
Pra esquecer o seu rosto
Às vezes falta de sorte
Nunca falta de amor
Às vezes perdemos o norte
Quem sabe se eu me for?
Às vezes seja tudo saudade da vida que você sempre quis e eu nem pude supor.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Você sabe com quem está falando?



Sou o Senhor Doutor Juiz da 1ª Vara Residual das Coisas Inúteis que, uma vez tendo sido Promotor do Juizado da Perseverança e Virtude, logrou êxito em todas as filas que já enfrentou.
Sou dono da maior rede de descanso do Sul ao Norte, importando descaso de todas as classes e exportando angústia para todas as instâncias.
Eu sou também o recordista mundial de corredores lotados de hospitais, que sobrevive por mais tempo à menor atenção e cuidado, tendo sucesso em todas as negativas que não merecia.
Não sou qualquer um, não!
Sou aquele que acorda cedo demais para o pouco que ganha e que tem o suor mais barato da economia. 
Sou quem sofre por diárias sem dizer nada a ninguém!
Eu sou, meu nobre, o único homem invisível aos olhos de quem, com certeza, vê. Sou aquele que passa e ninguém nota, e que a Mão invisível tem preguiça de dar um empurrãozinho.
Eu sou o cara que sangra aos baldes, que se desfaz em impostos, que se destrói pelas ruas, que nasce onde não devia, que vive como ninguém conseguiria, que morre todo dia, mas continua aqui!
Eu sou muitos.
Eu sou o do papelão, eu sou o do lixo, eu sou o do barco que passa no rio, eu sou o do cabo da enxada, eu sou o da seca, eu sou o da mata.
Eu sou, meu amigo, o cara que ninguém mais é. 
Eu sou quem ninguém quer ser.
Eu sou, às vezes, você!
Você sabe com quem está falando?!