quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Pouco importa



Pouco importa se pouco da vida eu vi
Por quantos países idiotas viajei e se roupas caras comprei
Quanto gastei com os estudos ou se os terminei
Quantos livros empoeirados deixei na prateleira
Pouco importam as palavras sem sentido que falei
As vezes que chorei escondido e se acumulei algum tempo perdido
As músicas que cantei e os porres que peguei
Pouco importa quanto dinheiro eu consegui ou guardei
Como amarrei os sapatos a vida inteira, pouco importa
Pouco importam quantas transas eu transei ou bocas eu beijei
Quantos relógios falsos ficaram na gaveta guardados
Quantos filmes estrangeiros eu assisti para impressionar na conversa de bar
Pouco importa quanto eu tive ou se tudo perdi
Quantas cicatrizes marcaram meu rosto e meus dedos
Pouco importa se as contas estavam em dias e se apaguei as luzes
Pouco importa como vivi ou como parti

Quando as mãos se juntam frias sobre o peito, irmão
Só importam quantas pessoas eu conquistei
Quantas mãos em prece se uniram e quais corações choraram
Importam só as transas que amei e voltaram pra suspirar uma última vez
Quantos amigos desrespeitosos aos meus pés já gelados ainda riem alto a lembrar de mim
Importam mesmo são as conversas que vão ecoar silêncio doloroso sempre que tocarem meu nome
Importa o tempo que gastei socorrendo um amigo, ou quantos vieram ao meu encontro quando precisei
Importa é quem, sem sair de casa, viajou comigo
Importa é se eu aprendi a ser eu mesmo a tempo
Importam quais corações toquei ao falar
Importa só por quem derramei lágrimas mudas ou gritei
Importa quem me escutou cantar e com meus copos pôde brindar
Importa em quantas casas eu podia entrar sem bater
Em quantas almas vou continuar a viver
Em quantos olhos eu olhei e sangram enquanto parto
Importam quantos amores eu deixei, mesmo que sem saber

Quando se batem as portas sobre os olhos fechados, irmão
Só importam quantos homens ficaram lá fora a me olhar e aplaudir.

terça-feira, 27 de setembro de 2016

O que é paixão?



- O que é paixão? - ela me perguntou.

A pergunta dela quebrando o silêncio me fez perceber que eu já estava ali parado, a olhar aqueles olhos pequenos que me cercavam de calma, por muito tempo. Balbuciei na pressa de dizer algo, mas calei. Não queria quebrar o momento com uma frase apressada e sem sentido. Eu já fazia isso demais e quase nunca a gente tem outra chance de responder a mesma pergunta. Eu também não me senti verdadeiramente obrigado a respondê-la com palavras, porque achei que meu olhar encantado pelo dela e o toque dos meus dedos nos seus cabelos pudessem expressar melhor, seja lá o que eu podia afirmar naquele instante. 

Quando se trata de sentimentos, eu sempre preciso de muito tempo para definí-los por vários motivos. Primeiro porque nunca são iguais a outros que eu já senti. Lógico que eu já havia me apaixonado antes, mas por outras mulheres, em outras idades, enquanto tinha outras contas a pagar. Com ela não haveria de ser igual. Não seria justo que eu usasse a definição que eu já conhecia. Porque nem que só o compasso do coração mudasse, não haveria de ser a paixão por ela a mesma que eu já vivi antes. Também ela, caso se apaixone por mim, se fizer como já fez por outros, não vai me agradar. Que ela tratasse de me arrumar uma loucura nova, um apelido carinhoso inédito, uma comida favorita com outros temperos ou uma posição diferente na cama! Pois das poucas certezas que tenho, uma delas é que eu não quero paixão de segunda mão. 

Outra razão pra eu tardar em tentar definir um sentimento é que ele sempre pode se confundir com a luz e a música que toca na hora de dizer e ficar mais melancólico que realmente é, ou me induzir a usar um vocabulário que condiz com o contexto, mas não com o que eu sinto. Ainda, pode se misturar com outras vontades e necessidades. Impossível imaginar, por exemplo, que alguém pode amar verdadeiramente se está roncando de fome ou com qualquer outra necessidade fisiológica em atraso. Talvez algum mártir por aí possa, tudo bem, mas não faz o meu estilo.

- Vai me enrolar até quando? Há três dias que você prometeu me dizer – trucou-me ela, daquele jeito docemente abusado de quem sabe sempre o quê e quando quer. E o "o quê" até costumava variar, mas o "quando" era sempre agora.


E eu ainda não disse nada. Beijei aquela testa franzida e questionadora e deixei meu olhar cair no dela. Ela silenciou como quem se recusava a começar um novo assunto até pôr fim naquele. E isso sequer me perturbava. 

Paixão, ali naquele segundo, não precisava ser maior que os olhos pequenos dela. Que olhos lindos!

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Pelo eterno instante em que te amei


Foi ainda na soleira, ao lhe receber na porta durante sua chegada, vendo o seu cabelo ser tocado por um laranja esmorecido embora teimoso, e sua face sob a luz morna do sol das cinco e meia, num dia quente do fim do verão, que eu me entreguei ao que você trazia de bom grado.
Brilharam alguns fios rebeldes no ângulo certo, como raios a evidenciar a sua delicada beleza, e formou-se uma áurea rósea digna de um filme francês que, ao tangenciar sua vistosa silhueta, deixou seus olhos ainda mais brilhantes, seus dentes ainda mais alvos, sua boca ainda mais mordiscável e sua alma maior.
Por poucos segundos, sob os exatos tons de amarelo que só o entardecer pode conceber, eu pude quase ver as asas que você esconde a muito custo do mundo, mas me deixou sentir em um momento em que provava que realmente viera inteira para nós dois.
E você mostrou-se a sonhada entrada dos meus dias plenos. E você exigia coisa alguma além de que a enchesse de vida e da pureza toda de um sentimento cru. E isso me encheu de súbito também de vida e da pureza toda de um sentimento cru.
Eu poderia viver para sempre ali, naquele instante efêmero. Efêmero, mas revelador a ponto de condenar-me mesmo à eternidade, se eu ousasse sorver cada uma das delícias que se entrincheiravam nos seus cílios lânguidos; na forma gentil que você sentou com as pernas tesas e pés firmes no chão e depois cruzou a direita sobre a esquerda; nos dedos de suas mãos pousadas preguiçosas sobre os joelhos; na cor de chiclete do seu batom gasto pelo beijo do encontro; no gosto da sua língua; no tom novo do seu cabelo; no ouro do seu vestido colado ao corpo que mais justo só eu poderia encaixar; na elegância envergonhada do seu olhar ao cruzar com o meu; nas palavras macias desvendando seu cotidiano curioso; e em cada um de seus outros mil detalhes perfeitos.
Eu poderia viver para sempre ali, naquele instante. Eu poderia viver para sempre tentando repetí-lo. Porque ali eu amei você. Porque espero saber amar de novo todo dia.

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

De todos os caminhos, eu só sei qual não tomar.

Sua insistência surgiu, dentre tantos outros convites, como a própria vida me chamando, me resgatando do círculo vicioso dos erros preconcebidos, já cometidos, tão pouco esquecidos e novamente tentados, me fazendo superar as esperanças vãs e mortas.
Por seus olhos apertados, apareceu-me a chance nova do não vivido, do não experimentado, do por conhecer, de outras sensações, de outros dias, de outra rotina e até de outros erros a serem aventurados. 
Também apareceu-me por entre seus suspiros, o amor. Mesmo que não fosse por você, mesmo que não fosse agora o instante para ser, apareceu-me, sim, o amor. O amor além do passado, travestido de esperança no mundo, na vida e nos outros. Apareceu-me o amor, alegando não ser tão abobalhada a ideia de me confiá-lo de novo. 
Eu demorei a acreditar, como sendo passarinho arriscando primeiro vôo, sem saber se será suicídio ou liberdade o ato de jogar-se de braços abertos do galho alto da mangueira.
Mas sua boca pequena e doce me chamou. E eu fui.
Com pernas cansadas de mil voltas dadas; joelhos ainda adormecidos pelo tempo de penitências realizadas; coração acuado como cachorro apedrejado em bar de estrada e com a cintura em ferrugem para a valsa da paixão adolescente, eu fui. 
E você, por surpresa, estava feito eu. Um tanto mais corajosa, mas feito eu. Foi então que eu quis lhe acompanhar e quis também lhe chamar. 
E então nós fomos.
E estamos indo. 
Com o rumo a sabe-se lá o quê, até sabe-se lá quando. Estamos indo. E a falta de certezas faz com que eu me atenha a aproveitar essas horas macias que se amontoam à sua presença e queira-me tornar aconchego à sua charmosa inquietude.
Vamos indo, mas sem pressa, porque de todos os caminhos, eu só sei qual não tomar.